segunda-feira, 2 de julho de 2012

O dia em que o rock progressivo parou

Aconteceu no Live 8, há exatos 7 anos atrás. Hyde Park, Londres, 2 de Julho de 2005, para maior precisão jornalística. Era uma noite de verão europeu. Céu limpo, com poucas estrelas. A Lua cobiçada naquela noite já dava o ar da graça nos telões posicionados nas laterais do palco montado no parque. As imagens análogas a um certo "lado escuro" eram inconfundíveis. Na parte superior da estrutura, letras em neon formavam um incisivo "NO MORE EXCUSES", enquanto um ruído de batimentos cardíacos invadia, de forma progressiva, todo o ambiente. Psicodélico na medida certa. A breve e peculiar Speak to Me, primeira faixa do clássico álbum The Dark Side of the Moon, abria o evento. Não restavam mais desculpas: o Pink Floyd estava, enfim, reunido.

Nada de subterfúgios: nem para os líderes mundiais, tampouco para os membros do Pink Floyd



Bob Gedolf, famoso ativista político, foi o responsável pelo reencontro da banda, que não se apresentava com sua formação clássica há duas décadas. O engajado irlandês organizaria o Live 8, uma série de concertos beneficientes realizados nos países integrantes do G8 e África do Sul em comemoração aos 20 anos do também histórico Live Aid, de 1985. A proximidade da data do evento com o 31º encontro do G8 não era coincidência. A intenção no novo festival era chamar atenção dos líderes mundiais para questões como o perdão da dívida externa de países pobres e ajuste das regras de comércio internacional com as nações africanas. Seriam realizados 10 shows simultâneos em diversos locais mundo afora. Um, em especial, marcaria para sempre a história da música.

Gedolf, que também era músico e ator, havia interpretado o protagonista Pink na versão cinematográfica do álbum The Wall, outro grande clássico da banda e autobiografia espiritual de Roger Waters. O baixista aceitaria prontamente o convite de Bob se David Gilmour também o fizesse. O guitarrista, relutante no início, concordou depois. Tudo pela boa causa. Nick Manson e Richard Wright também se juntaram ao grupo. Os deuses da boa música então agradeceram, extasiados como um solo de rock progressivo.

Lábios sincronizados com a música e olhos esbugalhados, vidrados no palco. Piscar? Seria um pecado mortal.
"Home, home again"
Quando a sequência formada por sons de helicópteros, risadas e ruídos de relógios de Speak To Me atingisse o ápice, o espetáculo, de fato, começaria. Com os primeiros acordes de Breathe, segunda faixa de The Dark Side of the Moon, os mais de 200 mil presentes no Hyde Park vibravam à medida que Gilmour deslizava os dedos suavemente em seu slide guitar.  Alguns ainda permaneciam incrédulos, descrentes da situação: ver o Pink Floyd com sua formação mais clássica, após longos 24 anos, era surreal demais até para quem já era expert em psicodelia avançada. Até então, o último show com a presença de Roger Waters na banda ocorrera em 17 de Junho de 1981, ainda na turnê de The Wall. Após desentendimentos criativos e profissionais, o baixista deixou a banda em 1985 pra seguir carreira solo. David Gilmour assumiu a liderança do grupo, disposto a entrar em uma ferrenha briga judicial com Waters, que reinvindicava a "aposentadoria" do nome da banda. Após um longo processo, Gilmour ganhou o direito de utilizar o título através de um acordo e manteria a banda com Manson e Wright até 1996, quando encerraria oficialmente as atividades do grupo.


Durante a performance da canção, o telão principal mostrava a icônica imagem do porco flutuante da capa de Animals. Era quase um lembrete de que o impossível acontecera: os garotos de ouro do rock n' roll progressivo estavam de volta.



"Money, it's a hit"
Os inconfundíveis sons de moedas e caixas registradoras indicavam que The Dark Side of the Moon continuaria rodando na vitrola com Money, um dos maiores hits do Pink Floyd. A plateia, ensandecida, presenciava todo o virtuosismo musical da banda inglesa, ainda intacto depois de tantos anos: Gilmour continuava um guitarrista afiadíssimo, alcançando notas que poucos conseguem; Waters ainda se mostrava um baixista preciso, com ótimo timing e presença de palco; Manson, dominando as baquetas, ditava o ritmo com ótimo feeling a cada virada da música, enquanto Wright mantinha tudo harmonioso através de sofisticadas linhas de teclado. Dick Parry completava o time executando o solo de sax deste clássico de um dos maiores álbuns de todos os tempos.


The Dark Side of the Moon tinha sido, com o perdão do clichê, um divisor de águas. A banda carecia de identidade própria desde a saída do lendário Syd Barrett, cantor, guitarrista e membro fundador do grupo. Nos trabalhos anteriores ao clássico disco de 1973 haviam boas canções, inventividade e relativo sucesso, mas pouca definição da direção musical do conjunto. Canções peculiares como Seamus (um dueto de blues entre Gilmour e um cão) e Alan's Psychedelic Breakfast (basicamente uma gravação do café da manhã do roadie da banda) permearam essa fase. Dark Side consolidaria definitivamente o espírito do "novo" Pink Floyd, em um álbum conceitual que reunia canções sobre as pressões da vida, como dinheiro, tempo e loucura. Deu certo: o sucesso foi grande, a grana foi boa, o legado foi construído e lendas surgiram (a pequena Dorothy manda lembranças da Terra de Oz). O resto é história.



"Wish you were here, Syd"
- É na verdade bem emocionante estar aqui com esses três caras depois de todos esses anos, recebendo o apoio de todos vocês. Enfim, estamos fazendo isso por todos que não estão aqui, mas particularmente, é claro, por Syd. - dizia Roger Waters, visivelmente emocionado, em meio ao dedilhado inicial de Wish You Were Here e ovação da plateia.

Por toda a carreira da banda os integrantes cultivaram um sentimento de veneração e melancolia por Syd Barret. O músico, que deixara o grupo no início de sua trajetória, tinha sido tudo para o Pink Floyd: o rosto bonito, a voz marcante, o gênio inventivo e o espírito louco. Seus delírios, entretanto, deixariam de ser um charme e artifício criativo. Problemas de relacionamento com a banda, surtos psicóticos e um envolvimento cada vez maior com LSD e outros alucinógenos provocariam seu afastamentos do conjunto em 1968, apenas três anos depois de sua formação. No seu lugar entraria o guitarrista David Gilmour, em caráter temporário. Havia a esperança de que Barrett se recuperasse e voltasse às atividades de estúdio e turnês. Isso munca aconteceria.

Com vocais divididos entre Gilmour e Waters, a canção arrepiava os presentes no Hyde Park. O álbum homônimo à música, lançado em 1975, continha uma faixa em duas partes em tributo a Syd, a fantástica Shine On You Crazy Diamond. O sentimento mais adequado ao momento, entretanto, condizia mesmo com Wish You Were Here: todos queriam que o Diamante Louco estivesse ali, naquela noite inesquecível, brilhando junto à sua eterna banda.


"Come on, it's time to go" 
Suspiros, arrepios e lágrimas permearam todo show. Alguns fãs, em aparente estado de choque, apenas fitavam o palco, estáticos. Vez ou outra conseguiam balbuciar alguns versos. Não era possível tornar aquele momento mais épico. Era sim.

Comfortably Numb encerraria o show de um modo condizente com a noite: espetacularmente. Alguns espectadores arriscavam performances de air guitar para acompanhar os dois fantásticos solos de Gilmour, que novamente dividia os vocais com Waters. Tudo era perfeitamente executado e mágico na performance de um dos maiores hits de The Wall, de 1979.

O álbum, outro grande clássico da banda, mais uma vez trazia um conceito por trás das 26 faixas distribuídas em dois discos. Alienação, abandono e isolamento dariam o tom da saga de Pink, protagonista da opera rock. O personagem era uma representação de Roger Waters: desgostoso após desentendimentos ocorridos com fãs no período anterior à gravação do disco e ainda atormentado por fantasmas da infância e juventude, o baixista criaria um muro imaginário ao seu redor para se isolar do mundo. Com o aclamado trabalho,Waters entrou definitivamente no patamar de grandes compositores da história da música. A opção natural pela carreira solo viria com o tempo, junto aos já famosos conflitos entre os demais integrantes.

O momento, entretanto, não era sobre separação, divergências artísticas e pelejas. Tudo isso era irrelevante àquela hora. Só o Pink Floyd importava.

Ao fim do show, o sentimento de êxtase invadia todos os presentes naquela noite de verão londrina, sem distinção entre músicos e plateia. Roger Waters chamaria todos os integrantes da banda para o centro do palco, para uma memorável saudação ao público. Seria a derradeira da banda.


Alguns reclamariam da curta duração do show, especialmente por se tratar de um reencontro há muito esperado. Outros veriam por um lado mais positivo: aqueles 20 minutos de show estavam entre os mais espetaculares da história da música. Impressões pessoais à parte, o legado e importância da apresentação são inegáveis, fazendo deste o show mais marcante de todo o Live 8.

Os integrantes da banda voltariam a se encontrar em outros eventos e apresentações, mas nunca com  sua formação integral. David Gilmour e Roger Waters continuariam com suas respectivas carreiras solos, enquanto Nick Manson incluiria o registro do show numa nova edição de seu livro Inside Out: A Personal History of Pink Floyd, no qual contava toda a trajetória da banda sob sua perspectiva. Richard Wright morreria em 2008, vítima de câncer.

Para aquela noite mágica de 2005, porém, não haviam obstáculos, desculpas e desentendimentos: o Pink Floyd estava reunido, e a história tinha sido escrita.

Lendária saudação ao final do Live 8. Preciso mesmo continuar escrevendo esta legenda?

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